Mila Ramos
Autor: J.R.Guzzo -- Veja - 28/01/2013
Se nada piorar neste ano de 2013, cerca de 250 policiais serão assassinados no Brasil até o próximo dia 31 de dezembro. É uma história de horror, sem paralelo em nenhum país do mundo civilizado.
Mas estes
foram os números de 2012, com as variações devidas às diferenças nos critérios
de contagem, e não há nenhuma razão para imaginar que as coisas fiquem melhores
em 2013. Ao contrário, o fato de que um agente de polícia é morto - a cada 35
horas - por criminosos
em algum lugar do país, é aceito com indiferença cada vez maior pelas
autoridades que comandam os policiais e que têm a obrigação de ficar do seu
lado.
A tendência, assim, é que essa matança continue
sendo considerada a
coisa mais natural do mundo — algo que “acontece”, como as chuvas de verão e os
engarrafamentos de trânsito de todos os dias.
Raramente, hoje
em dia, os barões que mandam nos nossos govemos, mais as estrelas do mundo
intelectual, os meios de comunicação e a sociedade em geral se incomodam em
pensar no tamanho desse desastre.
Deveriam, todos,
estar fazendo justo o contrário, pois o desastre chegou a um extremo
incompreensível para qualquer país que não queira ser classificado como selvagem.
Na França, a
ficar em um exemplo de entendimento rápido, 620
policiais foram assassinados por marginais nos últimos quarenta (40) anos — isso mesmo, quarenta anos, de 1971 a
2012. São cifras em queda livre. Na década de 80, a França registrava,
em média, 25 homicídios de agentes de polícia por ano, mais ou menos um padrão
para nações desenvolvidas do mesmo porte.
Na década de
2000 esse número caiu para seis — apenas seis, nem um a mais, contra os nossos
atuais 250. O que mais seria preciso para admitir que estamos vivendo no meio de
uma completa aberração?
Há alguma coisa
profundamente errada com um país que engole passivamente o assassínio quase
diário de seus policiais — e, com isso, diz em voz baixa aos bandidos que podem
continuar matando à vontade, pois, no fundo, estão numa briga particular com "a
polícia", e ninguém vai se meter no meio.
Essa degeneração
é o resultado direto da política de covardia a que os governos estaduais
brasileiros obedecem há décadas diante da criminalidade. Em nenhum lugar a
situação é pior do que em São Paulo, onde se registra a metade dos assassinatos
de policiais no Brasil; com 20% da população nacional, tem 50% dos crimes
cometidos nessa guerra.
É coisa que vem de longe.
Desde que Franco
Montoro foi eleito governador, em 1982, nas primeiras eleições diretas para os
governos estaduais permitidas pelo regime militar, criou-se em São Paulo, e dali
se espalhou pelo Brasil, a ideia de que reprimir delitos é uma postura
antidemocrática — e que a principal função do estado é combater a violência
da polícia, não o crime.
De lá para cá,
pouca coisa mudou. A consequência está aí: mais de 100 policiais paulistas
assassinados em 2012.
O jornalista
André Petry, num artigo recente publicado nesta revista, apontou um fato
francamente patológico: o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, conseguiu o
prodígio de não comparecer ao enterro de um único dos cento e tantos agentes da
sua polícia assassinados ao longo do ano de 2012.
A atitude seria
considerada monstruosa em qualquer país sério do mundo. Aqui ninguém sequer
percebe o que o homem fez, a começar por ele próprio. Se lesse essas linhas,
provavelmente ficaria surpreso: "Não, não fui a enterro nenhum. Qual é o
problema?".
A oposição ao
governador não disse uma palavra sobre sua ausência nos funerais. As dezenas de
grupos prontos a se indignar 24 horas por dia contra os delitos da polícia,
reais ou imaginários, nada viram de anormal na conduta do governador. A mídia
ficou em silêncio.
É o aberto
descaso pela vida, quando essa vida pertence a um policial. É, também, a
capitulação diante de uma insensatez: a de ficar neutro na guerra aberta que os
criminosos declararam contra a polícia no
Brasil.
Há mais que
isso. A moda predominante nos governos estaduais, que vivem apavorados por
padres, jornalistas, ONGs, advogados criminais e defensores de minorias,
viciados em crack, mendigos, vadios e por aí afora, é perseguir as suas próprias
polícias — com corregedorias, ouvidorias, procuradorias e tudo o que ajude a
mostrar quanto combatem a "arbitrariedade".
Sua última
invenção, em São Paulo, foi proibir a polícia de socorrer vítimas em cenas de
crime, por desconfiar que faça alguma coisa errada se o ferido for um criminoso;
com isso, os policiais paulistas tornam-se os únicos cidadãos brasileiros
proibidos de ajudar pessoas que estejam sangrando no meio da rua.
É crescente o
número de promotores que não veem como sua principal obrigação obter a
condenação de criminosos; o que querem é lutar contra a “higienização" das ruas,
a “postura repressiva” da polícia e ações que incomodem os
“excluídos”.
Muitos juizes
seguem na mesma procissão. Dentro e fora dos governos continua a ser aceita,
como verdade científica, a ficção de que a culpa pelo crime é da miséria, e não
dos criminosos. Ignora-se o fato de que não existe no Brasil de hoje um único
assaltante que roube para matar a fome ou comprar o leite das
crianças.
Roubam, agridem
e matam porque querem um relógio Rolex; não aceitam viver segundo as regras
obedecidas por todos os demais cidadãos, a começar pela que manda cada um ganhar
seu sustento com o próprio trabalho. Começam no crime aos 12 ou 13 anos de
idade, estimulados pela certeza de que podem cometer os atos mais selvagens sem
receber nenhuma punição; aos 18 ou 19 anos já estão decididos a continuar assim
pelo resto da vida.
Essa tragédia,
obviamente, não é um “problema dos estados”, fantasia que os governos federais
inventaram há mais de 100 anos para o seu próprio conforto — é um problema do
Brasil.
A presidente
Dilma Rousseff acorda todos os dias num país onde há 50000 homicídios por ano;
ao ir para a cama de noite, mais 140 brasileiros terão sido assassinados ao
longo de sua jornada de trabalho.
Dilma parece não
sentir que isso seja um absurdo. No máximo, faz uma ou outra reunião inútil para
discutir “políticas públicas” de segurança, em que só se fala em verbas e todos
ficam tentando adivinhar o que a presidente quer ouvir.
Não tem
paciência para lidar com o assunto; quer voltar logo ao seu computador, no qual
se imagina capaz de montar estratégias para desproblematizar as problematizações
que merecem a sua atenção. Não se dá conta de que preside um país ocupado, onde
a tropa de ocupação são os criminosos.
Muito pouca
gente, na verdade, se dá conta. Os militares se preocupam com tanques de
guerra, caças e fragatas que não servem para nada; estão à espera da invasão dos
tártaros, quando o inimigo real está aqui dentro. Não podem, por lei. fazer nada
contra o crime — não conseguem nem mesmo evitar que seus quartéis sejam
regularmente roubados por criminosos à procura de armas.
A classe média,
frequentemente em luta para pagar as contas do mês, se encanta porque também
ela, agora, começa a poder circular em carros blindados: noticia-se, para
orgulho geral, que essa maravilha estará chegando em breve à classe
C.
O número
de seguranças de terno preto plantados na frente das escolas mais caras, na hora
da saída, está a caminho de superar o número de professores. As
autoridades, enfim, parecem dizer aos policiais: “Damos verbas a vocês. Damos
carros. Damos armas. Damos coletes salva-vidas.
Virem-se”.
É perturbadora,
no Brasil de hoje, a facilidade com que governantes e cidadãos passaram a
aceitar o convívio diário com o mal em estado puro.
É um "tudo
bem” crescente, que aceita cada vez mais como normal o que é positivamente
anormal — “tudo bem” que
policiais sejam assassinados quase todos os dias, que 90% dos homicídios jamais
cheguem a ser julgados, que delinquentes privatizem para seu uso áreas inteiras
das grandes cidades.
E daí? Estamos tão bem que a última grande ideia do governo, em matéria
de segurança, é uma campanha de propaganda que recomenda ao cidadão: “Proteja a
sua família. Desarme-se”.
É uma bela maneira, sem dúvida, de namorar com o
suicídio.
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