terça-feira, 26 de março de 2013

TALVEZ FALTE CHÃO



Adoro as Crônicas do Donald, um grande amigo.
Ele sabe contar e descrever coisas assim, mesmo como fala. Se leio seu texto, imagino sua voz e sinto-o por perto. Pena que o veja tão pouco.
Sempre ocupado com seu trabalho, sua  excelente leitura, com sua literatura cheia de conteúdo, com o mundo, enfim.
Bem-vinda seja a invenção da internet. Bem-dita seja.
                                                                                     Mila Ramos



Talvez falte chão
Donald Malschitzky
 

         Prédios seculares com suas paredes absurdamente espessas rachadas ou até caídas, inclusive na Universidade San Carlos de Guatemala, uma das primeiras da América Latina, oficialmente reconhecida em 1676. Nas ruas, ambulantes da necessidade vendendo comida dentro das mais abomináveis medidas de higiene; muita gente morando nas calçadas, em improvisadas barracas, ali mesmo fazendo suas necessidades. Passara um pouco mais de um ano do terremoto mais destrutivo já acontecido no País, com 23 mil mortos. As ruínas maias não foram afetadas.

         Em Quetzaltenango (lugar de abundância de quetzais – o quetzal é o pássaro símbolo da Guatemala -), a uns 160 km da Capital, no meio do imenso mercado a céu aberto, uma pequena igreja antiga, toda branca e mantida em pé graças a escoras de  troncos de árvores que a cercavam. Seu chão parecia ser formado por estrelas, tamanho o número de velas acesas, a única iluminação. No meio delas, homens e mulheres indígenas, cada um segurando instrumento feito de uma lata furada presa a cordas, fazendo as vezes de turíbulo. Nas latas, brasas e uma mistura de folhas. Oravam em sua língua e caminhavam entre as velas, movendo seus turíbulos em longos arcos. Eram senhores das nuvens. Surreal, belo, tocante, primitivo. Nas orações, mais do que pedir, cobravam pelos pedidos feitos e não atendidos: pela vaca que acabou morrendo, a lavoura que não produziu, o filho que não se curou. Sinceros, sem qualquer hipocrisia.

         Esse quadro pleno de simplicidade e poesia é de um contraste brutal  com outro com o qual nos deparamos diariamente: a intolerância religiosa e o uso de Deus e do diabo para fins que, muito mais, servem ao segundo. Muitos, mesmo bem intencionados, com fé e uma vida exemplar, são levados a condenar qualquer manifestação religiosa diferente da que professam, qualquer cerimônia que não segue os estreitos cânones a que estão acostumados, e chamam o sincretismo de coisa do capeta, esquecendo que todas as religiões  têm um pé no sincretismo, embora o neguem de mãos juntas. Fazem da fé,  sinônimo de intolerância.

         Talvez lhes falte um chão de estrelas bem simples e primitivo. Puro.     

                 

 


 

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