Adoro as Crônicas do Donald, um grande amigo.
Ele sabe contar e descrever coisas assim, mesmo como fala. Se leio seu texto, imagino sua voz e sinto-o por perto. Pena que o veja tão pouco.
Sempre ocupado com seu trabalho, sua excelente leitura, com sua literatura cheia de conteúdo, com o mundo, enfim.
Bem-vinda seja a invenção da internet. Bem-dita seja.
Mila Ramos
Talvez falte chão
Donald Malschitzky
Prédios
seculares com suas paredes absurdamente espessas rachadas ou até caídas,
inclusive na Universidade San Carlos de Guatemala, uma das primeiras da América
Latina, oficialmente reconhecida em 1676. Nas ruas, ambulantes da necessidade
vendendo comida dentro das mais abomináveis medidas de higiene; muita gente
morando nas calçadas, em improvisadas barracas, ali mesmo fazendo suas
necessidades. Passara um pouco mais de um ano do terremoto mais destrutivo já
acontecido no País, com 23 mil mortos. As ruínas maias não foram afetadas.
Em Quetzaltenango (lugar de abundância de quetzais – o
quetzal é o pássaro símbolo da Guatemala -), a uns 160 km da Capital, no meio
do imenso mercado a céu aberto, uma pequena igreja antiga, toda branca e mantida
em pé graças a escoras de troncos de
árvores que a cercavam. Seu chão parecia ser formado por estrelas, tamanho o
número de velas acesas, a única iluminação. No meio delas, homens e mulheres
indígenas, cada um segurando instrumento feito de uma lata furada presa a
cordas, fazendo as vezes de turíbulo. Nas latas, brasas e uma mistura de
folhas. Oravam em sua língua e caminhavam entre as velas, movendo seus
turíbulos em longos arcos. Eram senhores das nuvens. Surreal, belo, tocante,
primitivo. Nas orações, mais do que pedir, cobravam pelos pedidos feitos e não
atendidos: pela vaca que acabou morrendo, a lavoura que não produziu, o filho
que não se curou. Sinceros, sem qualquer hipocrisia.
Esse quadro pleno de simplicidade e poesia é de um contraste
brutal com outro com o qual nos
deparamos diariamente: a intolerância religiosa e o uso de Deus e do diabo para
fins que, muito mais, servem ao segundo. Muitos, mesmo bem intencionados, com
fé e uma vida exemplar, são levados a condenar qualquer manifestação religiosa
diferente da que professam, qualquer cerimônia que não segue os estreitos
cânones a que estão acostumados, e chamam o sincretismo de coisa do capeta,
esquecendo que todas as religiões têm um
pé no sincretismo, embora o neguem de mãos juntas. Fazem da fé, sinônimo de intolerância.
Talvez lhes falte um chão de estrelas bem simples e
primitivo. Puro.
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