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O amor é sempre misterioso. Até mesmo o que sentimos por alguns autores mais do que por outros. Jorge Luis Borges, ele próprio um escritor apaixonante, evocou pela vida afora, em entrevistas, cartas e textos, o escritor que havia encantado a sua adolescência: o britânico Robert Louis Stevenson nascido na longínqua Escócia. Eu tive e continuo a ter uma grande paixão pela francesa nascida na Borgonha, Gabrielle Sidonie Colette, ou simplesmente Colette, que encantou a minha juventude e continua a me encantar cada vez que a leio ou releio.

E assim como fiz questão de conhecer alguns ensaios críticos sobre o não menos apaixonante Marcel Proust, li sobre Colette, entre outros, o maravilhoso livro de Julia Kristeva a ela consagrado na famosa trilogia sobre o gênio feminino, (do qual as outras representantes  são Melanie Klein e Hannah Arendt). E há pouco tempo percorri, de Guy Durey, o Abecedário de Colette, e só  não posso dizer de A a Z porque acaba em W, a letra inicial de Willy, pseudônimo do primeiro marido da escritora,  (Henry Gauthier-Villars), que descobriu e estimulou o talento da jovem borgonhesa que haveria de elaborar uma das escritas mais fascinantes que a literatura francesa deu ao  mundo.

colette

Colette (1873-1954) é de uma época em que a gratuidade da arte ainda equivalia à sua absoluta necessidade. Ela fez pantomima, foi atriz de vaudeville e de teatro quando até mesmo o que hoje chamaríamos de entretenimento possuía uma “aura”, um certo mistério. Foi na literatura, porém, que essa artista múltipla se revelou magnífica.  Desde os primeiros livros assinados abusivamente por Willy, depois por Willy-Colette, a escrita tornou-se sua grande aventura, como diz Durey, - a aventura das palavras, da língua e da poesia.

Sim, porque sem nunca ter escrito versos, como a nossa Clarice Lispector, Colette criou também um oceânico poema em prosa. Seu uso refinado e original de metáforas revela uma visão de mundo enriquecida pelo conhecimento de plantas, flores, insetos e animais, aguçada pela sensibilidade aos cheiros, às cores e aos sabores, tudo o que a infância em Saint-Sauveur-en-Puisaye e o jardim paradisíaco de sua mãe nela fizeram desabrochar. Decorre daí sua tão famosa sensualidade, que é abrangente, que é erótica como a vida. Por isso, Julia Kristeva define sua escrita como la chair du monde, a carne do mundo.

Vitalista, como Nietzsche, Colette é também psicóloga. Seu olhar penetrante analisa os personagens de forma implacável, mais como quem observa e compreende, não como quem julga e condena. E quando aborda temas que outros escritores podem tornar escabrosos, ela o faz com delicadeza e muitos silêncios. Libertária nos romances, como em sua própria vida, jamais é escatológica ou vulgar. Há malícia em muitos dos seus relatos, mau-gosto, jamais. Seus livros foram parar no Index da Igreja Católica provavelmente por causa de sua vida considerada “imoral”, para os padrões da época, não pelo que escreveu. Ou talvez o Vaticano estivesse numa fase totalmente avessa à poesia. Pois em seus livros, quando os tons são mais crus, há também delicadeza, quando o tema é erótico, há também pureza.

Meus amigos conhecem a pequena coleção de pesos de papel, que venho aumentando ao longo dos anos, numa clara e confessa imitação da grande coleção de sulfures, que a escritora francesa preferia chamar de bolas de vidro ou bolas coloridas. E ao referir-se a elas, costumava brincar dizendo que eram pesos de papel para não pesar sobre papel algum, como “arte pura por sua inutilidade”. Colecionou-os, contudo, por mais de trinta anos explicando que “o que é inútil é quase sempre inesgotável”.

Isso lembra uma epígrafe, de Henri de Regnier, que Maurice Ravel colocou na partitura de uma de suas obras: Le plaisir délicieux et toujours nouveau d’une occupation inutile. (O prazer delicioso e sempre novo de uma ocupação inútil). Contemporâneo e amigo de Colette, o grande músico, inspirado em texto dela, escreveu uma de suas obras-primas: L’enfant et  les sortilèges.

É uma ópera totalmente diferente: o personagem principal é um menino que está vivendo uma crise de rebeldia e se diz com preguiça de fazer os deveres, com vontade de, ao contrário do que sempre acontece, colocar Sua Mãe de castigo e porque ele quer ser “mau, mau, mau”!

Irritada e cansada, a mãe o deixa num helsalão que dá para um jardim e, de repente, móveis e coisas tomam vida, se animam e cantam e dançam e as alucinações crescem e se multiplicam, parecendo que tudo se arma contra ele. As árvores e os bichos do jardim também o acusam e ameaçam. Até o momento em que, ao encontrar um esquilo ferido, o menino se compadece e cuida da pata do bichinho. Seu gesto bom é suficiente para redimi-lo de todas as traquinagens.  Tudo se acalma então.  Arrependido, sua última palavra é um chamado: Mamãe!

Escolhi, para vermos e ouvirmos, um belo trecho dessa obra  cuja estreia ocorreu no Teatro do Cassino da Ópera de Monte Carlo, em 25 de março de 1925, há 90 anos.  É quando o fogo começa a dançar e a cantar e as pastoras do papel de parede também cantam.